Nas apresentações virtuais feitas entre 2020 e 2021, Simone doou aos fãs o que tem de melhor: seu canto. Lembrou sucessos da carreira e apresentou surpresas, entre elas duas canções inéditas compostas por ela, celebrando seu passado e acenando para o futuro.
Leonardo Lichote
A quarentena no Brasil, imposta pelo coronavírus, estava completando um mês quando Simone entrou ao vivo no Instagram, de sua casa, para sua primeira live, no dia 12 de abril de 2020. Ainda nos primeiros minutos, antes de entoar Canteiros (Cecília Meireles / Fagner) acompanhada pelo piano pré-gravado de Leandro Braga, ela conversou com seu público: “Vou fazer mais… Não (vou) me preparar porque… É assim, peito aberto, coração na garganta. O meu material de trabalho tá sendo essa caixinha e o telefone. Tô aqui à disposição de vocês”.
A promessa de “vou fazer mais” foi largamente cumprida: no total, entre abril de 2020 e abril de 2021 foram 37 lives, todas de peito aberto e coração na garganta. Em cada uma delas, um repertório cuidadosamente escolhido, combinando sucessos e surpresas sobre as bases instrumentais enviadas por amigos como o já citado Leandro Braga, Ana Costa, Leila Pinheiro, Marina Lima, Thiago da Serrinha e Webster Santos. Além dos reforços, ao longo dos shows carregados de informalidade — a despeito da excelência da voz e do repertório —, Simone também se acompanhou ao violão, o que não fazia desde a temporada do show Simone, entre 2002 e 2003. E, claro, não faltou seu indefectível e tamborim batucado com os dedos.
Ao longo desse período, as lives de Simone ofereceram alento em meio à situação de incerteza (econômica, existencial) na qual o mundo foi lançado pela pandemia. Era essa a intenção maior da cantora quando se lançou nessa sequência de apresentações virtuais: estar perto de seus fãs dando a eles o que de melhor tem — sua voz e interpretação. Para além do caráter afetivo desses encontros virtuais, os fãs puderam ter contato com a grandeza de seu canto, ainda mais evidente exposto em sua crueza máxima — em casa, sem a proteção do palco ou do estúdio. E o Brasil pôde passear por sua carreira de quase cinco décadas (seu disco de estreia foi lançado em 1973), numa panorâmica privilegiada, com a curadoria da própria cantora.
Apesar do caráter assumidamente amador próprio das lives (seguindo as recomendações dos especialistas de saúde, Simone fazia questão de estar sozinha nas transmissões), a missão foi encarada com seriedade e profissionalismo. Cada um dos encontros — semanais até o fim de 2020, sempre aos domingos — era pensado como um show, com roteiro único, o que exigiu dela e de sua equipe uma dedicação de pelo menos oito horas diárias. Seus principais parceiros na tarefa foram o compositor Tiago Torres, que a ajudava na pesquisa de roteiro, e Deco Gedeon, seu empresário, responsável pela produção das lives.
Ao longo do processo, Simone e sua equipe foram se aprimorando no formato. A evolução desse diálogo pode ser facilmente percebida por quem assiste em sequência aos vídeos dos 37 encontros virtuais — todos disponíveis no canal da cantora no YouTube. Aos poucos, o que começou ótimo foi ficando ainda mais depurado, atravessando desafios como a equalização do áudio (sem mesa de som ou retorno, Simone foi entendendo a melhor forma de cantar e captar sua voz) e a maneira de evitar o reflexo da luz nos óculos da cantora (que ela teve que usar para poder ler as letras das canções e mensagens dos fãs durante as lives).
Além das gravações enviadas por músicos amigos, feitas especialmente para as lives, Simone usou como base para seu canto algum material que tinha em seu arquivo pessoal: ensaios para o show Simone Encontra Ivan Lins e sessões de seu disco Na Veia. Nesses registros, estão músicos como Lui Coimbra, Bruno Migliari, Marco Brito, Thiago da Serrinha e Christiano Galvão. Ou seja, as lives foram também celebrações de encontros musicais que a cantora estabeleceu ao longo da carreira.
O repertório marcou outras celebrações. Em primeiro lugar, aos compositores que a ajudaram a construir sua caminhada. Nas lives, foram lembradas canções de Sueli Costa, Abel Silva, Francis Hime, Chico Buarque, Caetano Veloso, João Bosco, Aldir Blanc, Gonzaguinha, Ivan Lins, Vitor Martins, Beto Guedes, Ronaldo Bastos, Adriana Calcanhotto, Milton Nascimento, Martinho da Vila, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Rita Lee, Roberto de Carvalho, Fausto Nilo, Djavan, Belchior e muitos outros. Muitas delas nunca haviam sido gravadas por Simone, apesar de ela já tê-las interpretado nos palcos, entre elas Como Dois e Dois (Caetano Veloso) e Cotidiano (Chico Buarque).
Houve mesmo algumas canções que apareceram pela primeira vez na voz de Simone — é o caso de Me Dê, de Martins e PC Silva. Um aceno para o futuro, assim como as duas inéditas apresentadas nas lives, ambas compostas por Simone com parceiros. Nua, presente na primeira live, tem música da cantora e letra de Tiago Torres. Com Zélia Duncan, ela escreveu Vocês Estavam Lá, composta em homenagem ao público que a acompanhou virtualmente nesse período da pandemia.
Simone não interrompeu o compromisso das lives nem tomada pela dor funda da morte de sua irmã Rosinha — que ela revelou, emocionada, na apresentação do dia 19 de julho. Coração na boca, peito aberto — como na letra de Sangrando, de Gonzaguinha, gravada por ela em 1980 e cantada três vezes em suas lives. Simone só sabe assim.
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O Brasil ficou pequeno para a voz de Simone, que ganhou fãs em todas as partes do mundo.
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